Apólice / O seguro morreu de infelicidade
Temos de acordar bem, de comer
bem, de correr muito, de viver tudo o que nos faz rir durante o tempo
suficiente para acordarmos de novo, comermos de novo, corrermos muito mais e
vivermos mais uma vez tudo o que nos faz sorrir durante o tempo suficiente para
acordarmos de novo, comermos de novo, corrermos ainda mais e vivermos tudo o
mais que nos faz não nos sentirmos mal durante o tempo suficiente para
acordarmos, comermos, corrermos e vivermos durante o tempo suficiente até não
sentirmos nada e morrermos. Sem entretempos mas sobretudo sem contratempos. Os
outros são meios e nunca fins. As dependências são fraquezas e as prisões são
pesos-mortos. As cicatrizes não são sinal de experiência mas de derrotas
inaceitáveis. O amor é tóxico e um risco que a apólice do coração não suporta.
Já ninguém se quer apaixonar,
ninguém quer dar o salto para o vazio ou mesmo o primeiro passo. Tudo tem de
estar perfeito antes de acontecer. Connosco. Adiamos o essencial para
ajustarmos o acessório, de modo a que não prejudique o essencial, quando este finalmente
acontecer… Não há mais montanhas-russas, não há mais ansiedade, não há mais
curiosidade pelo outro, ninguém espera, ninguém sente antecipação, frustração,
alegria e satisfação no mesmo dia, na mesma hora, pelo facto de o outro poder
chegar, de ainda não ter chegado, de já ter chegado e de ter vindo ter contigo,
para estar contigo durante o tempo todo em que as diversões são apenas
desculpas para ser, contigo, o centro da razão de passar na feira. Nunca havia
compreendido a mítica imagem da roda gigante na feira popular… sempre me
pareceu a mais tola diversão de todas! Mas a tolice é não ter percebido que o
importante da roda gigante não é o passeio mas o tempo com alguém, o silêncio
partilhado, a honestidade a que nos obrigamos quando estamos expostos e sem
hipóteses de fuga, o momento em que nos damos e percebemos que queremos acordar
bem ao lado de alguém, comer bem com alguém, correr muito para alguém e viver
tudo o que nos faz ser feliz durante o tempo em que temos esse alguém connosco.
1 comentário:
Verdade!
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