A salvo

Deixei-me navegar para longe sem uma mensagem tua...  nem um toque, nem um sorriso, nem um olhar, nem um pedido. Não sei se foste tu que foste ou se fui eu que me virei. No escuro, não faz diferença. Apenas o cheiro da tua pele hesitou, como passos nus em chão de granito, duro como o momento em que se extinguiu...

porque o rochedo da inevitabilidade não apaga as linhas com que enleavas o meu olhar, não corta a brisa doce do mar de palavras surdas com que velejavas o meu corpo, não pesa sobre o pico de desejo com que me abraçavas a fundo perdido, não cede às investidas da paixão das manhãs que sonhámos!..

Um dia, encontrarei a pedra, aquela ínfima pedra solta. Na base. E, antes da tarde o ser, verei as ondas do teu corpo enrolarem sobre mim, provarei o sal que me tempera a tua pele, salvar-me-ei nas amarras fortes do teu cabelo, suspirarei por casa, por ti, por mim, a salvo, enfim.

Lobo

Surges a vermelho. Trazes silêncio a onde passas. Intimidas quem te segue. Os teus lábios têm o talento único de nunca terem dito a palavra que os teus olhos incessantemente repetem a quem se atreve questionar. O teu silêncio é de seda. Toca, marca e segue caminho. O rio no teu cabelo flui em todas as direcções em enxurradas de aparente prazer liberto, deixando-te um sorriso no rosto. O controlo do teu descontrolo desconcerta-me. É um desafio, percebo, daqueles que não quer resposta nem solução. Apenas desafio, uma prova que se faz sem se deixar a marca do batom na borda do copo, esperando que um incauto debite todas as qualidades daquilo que nunca realmente provou. Ninguém o fez. Mas o lobo traiu-me. O seu pelo é suave e a sua hora perfura qualquer armadura. Louca, a mão que ousou cruzar-se com a tua. Uma carícia que nunca mais se esqueceu. Um sorriso roubado que se deu sem se ver, sem mais ninguém ver... um cabelo que se prendeu no canto da boca... agora ficas longe, demasiado longe para a poder sentir, para o poder ver, para o poder repor, de novo. Se, ao menos, a cova desse sorriso não me matasse...